É 1981. Uma idéia velha, surgida quase um século antes volta à baila. Com o petróleo subindo fortemente de preço, na esteira de tensões no Oriente Médio, visionários começam a escarafunchar a literatura técnica e a fazer testes empíricos para tentar encontrar combustíveis renováveis, que pudessem ser produzidos em massa e substituir derivados de petróleo. Logo alguém encontra um velho livro, de 1913, escrito por Rudolf Diesel, polêmico engenheiro alemão que inventara o motor Diesel. Havia trechos proféticos: ?No futuro, países com grandes áreas agricultáveis, clima ameno, sol o ano inteiro, água em abundância, mão-de-obra em quantidade e a custos economicamente justificáveis, teriam grandes vantagens em usar óleos vegetais como combustíveis para os motores de minha concepção?.
O Brasil estava em estado de choque. O petróleo importado, mais caro a cada dia, causava grave desequilíbrio do balanço de pagamentos. Só 10% do petróleo consumido pelo país eram produzidos em casa. Com o álcool substituindo gasolina e as refinarias trabalhando no limite para otimizar a produção de diesel, o governo lembrou da idéia de Rudolf Diesel. Logo surgiram propostas ingênuas de modificar os motores. Mas testes conclusivos da indústria automobilística demonstraram que óleo vegetal "in natura", tal como extraído das plantas, causava transtornos graves aos motores, ao meio ambiente e ao bolso dos consumidores.
Afinal, qual é o problema?
Todo óleo vegetal ? há quase 200 deles ? é constituído de alguns tijolinhos moleculares específicos, os chamados ácidos graxos. Estes apresentam estruturas moleculares levemente diferentes entre si o que confere a cada óleo algumas características únicas quanto a suas propriedades fisico-químicas. São essas propriedades ? entre outras ? que por fim determinam o comportamento dos óleos quando se tenta queimá-los como se fossem diesel.
Rudolf Diesel não sabia é que seus motores, antes operados com óleo de baleia e de fígado de bacalhau, betume e várias misturas combustíveis, passariam anos mais tarde a utilizar o que se chama óleo diesel, um derivado médio do petróleo, além de ser totalmente modificados em seus princípios de operação. Ao profetizar o futuro com óleos vegetais, Diesel deu apenas um "palpite". Nem se fosse possível voltar aos motores primitivos haveria um modo de fazê-los funcionar com óleos de salada doméstica.
Desde os tempos imemoriais dos sumérios existia um processo simples para fabricar sabão: processar uma gordura, vegetal ou animal, na presença de uma substância alcalina, pela qual se obtinha a separação da glicerina. A glicerina é quimicamente um triálcool. Se ao processar a mesma reação se agregar outro álcool (metanol ou etanol), este se liga quimicamente aos ácidos graxos, formando moléculas estáveis, gerando três ésteres conforme a fonte do óleo em bruto. Essa segunda forma de processamento se chama transesterificação, tendo como subproduto a glicerina e outros resíduos. Nessa operação usam-se 17% de álcool em relação ao volume de ésteres resultantes.
Óleo vegetal transesterificado, após processado num reator, torna-se o chamado biodiesel e tem, assim, amenizadas as propriedades indesejáveis que impedem seu uso "in natura" como combustíveis. Mas essa operação não é algo trivial que possa ser feita facilmente no sítio de um agricultor, em pequena escala e com aparatos simples. Exige aparelhagem complexa, em condições estritamente controladas, para que o produto final não contenha glicerina residual, ácidos reativos ainda livres, sabões metálicos, gomas, flocos, borras e outras impurezas que poderiam formar depósitos, atacar peças, contaminar o óleo lubrificante, entupir filtros e galerias internas dos motores e gerar emissões perigosas como a acroleína. Algo impensável.
Festival de espécies oleaginosas
Não existe cabimento em desenvolver um programa nacional de biodiesel usando para isso dezenas de opções, como o governo propõe. Simplesmente porque com uma composição de ácidos graxos diversos, dependendo da espécie vegetal, do clima da região, da umidade e até da composição dos solos, os ésteres resultantes teriam características físico-químicas totalmente diferentes.
Na Europa, o biodiesel usa uma única fonte, a colza ou canola. Empresas processadoras de óleos vegetais providenciam o descarte adequado das frações indesejáveis e provêem uniformidade técnica para o produto final. Depois o entregam às refinarias de petróleo para ser adicionado ao diesel. A glicerina removida, na Europa, já ocupou praticamente toda a demanda internacional para essa matéria prima. A produção em grande escala já é um problema preocupante porque requer descarte não-remunerado. Nos Estados Unidos, o projeto do biodiesel será inteiramente feito com base no óleo de soja. Lá também há visionários advogando uma enorme variedade de plantas, mas a diferença é que ninguém os leva a sério.
Jamais se imaginou seguir vocações regionais, dentre os países da União Européia, para que um use colza, outro milho, soja ou girassol. Isso impediria o abastecimento confiável de caminhões, ônibus e picapes que operam em todos os países. A razão de usar uma só espécie é ter um combustível idêntico em suas especificações técnicas, para que não seja preciso recalibrar os motores, afastando dificuldades sérias como as apresentadas pelos óleos "in natura".
No Brasil, o biodiesel é visto como um programa de boas intenções, como ferramenta de distribuição de renda mínima e incentivo social para fixação do homem à terra. Só que não dá para imaginar um veículo abastecido no Paraná com ésteres metílicos derivados de soja, isto é, biodiesel em mistura com diesel comum, viajar até Minas Gerais, sendo reabastecido com ésteres etílicos de mamona e diesel, e prosseguir viagem utilizando ésteres metílicos ou etílicos de dendê no Pará.
Um programa com sérios riscos
O que atenta contra a racionalidade do atual programa brasileiro de biodiesel nem é o excesso de alternativas. Tomemos o óleo de dendê como exemplo. Ele possui alto valor no mercado internacional, de quatro a cinco vezes mais caro em relação ao derivado de petróleo. É bastante utilizado como lubrificante tópico em operações que envolvem processamento ou beneficiamento de metais. Queimá-lo como combustível não parece racional já que utilizá-lo como preciosa matéria prima seria bem mais vantajoso. Além disso, a primeira safra ocorre entre 7 e 11 anos depois da plantação.
O óleo de mamona está muito mais para lubrificante do que para combustível. A elevada viscosidade dos ésteres resultantes não recomenda seu uso sem forte tratamento após a transesterificação. Também se trata de um produto nobre. Estudos mundiais revelaram ser possível sintetizar substâncias compostas que servem para fabricar ossos artificiais que não são rejeitadas pelo corpo humano. O alto valor de mercado advém ainda da aplicação na síntese de materiais plásticos, tintas para off-set, lubrificantes em aparatos de mecânica fina e até em cápsulas de remédio. Vamos queimar isso num motor?
O biodiesel nos termos atuais gera belos discursos, porém sem passar por testes que garantam que a idéia de multifontes funciona. A probabilidade de problemas é muito alta. O consumo de óleo diesel no Brasil hoje alcança cerca de 40 bilhões de litros por ano. E se o prometido crescimento econômico vingar, esse consumo vai aumentar de modo rápido e inexorável. Só para fazer a mistura de 2% ao diesel há necessidade de produzir 800 milhões de litros de biodiesel a partir de 900 milhões de litros de algum óleo vegetal bruto a ser processado. Para 5% de mistura (também obrigatória por lei) serão necessários 2 bilhões de litros de biodiesel (2,2 bilhões de óleo bruto) para o consumo atual de diesel. Também é preciso haver álcool suficiente para realizar a transesterificação. O uso crescente de álcool nos motores flex e a cotação elevada do açúcar no mercado externo são complicadores.
Dos cento e tantos óleos ?em estudo? somente o de soja preenche o requisito de já ser produzido em altos volumes. Simplesmente porque é um produto do agronegócio organizado, de grande porte, com tecnologia de ponta, políticas fitossanitárias adequadas, responsabilidade em defensivos agrícolas e ampla mecanização das colheitas. A infra-estrutura de transporte ainda deixa a desejar no atendimento aos pólos de produção. Não há, porém, excedentes dessa commodity. Tudo é colocado no mercado local e internacional.
Pró-soja que nunca houve
O Brasil nunca montou um "Pró-soja" ou qualquer tipo de subsídio para sua cultura. Ainda assim, é o segundo produtor mundial. Deu certo apesar das ineficiências do governo. O melhor adubo da terra é o preço, e no caso da soja vinha sendo suficiente, embora tenha caído fortemente nos últimos tempos. Para que se monte um ?Proazeite? no Brasil é preciso acalmar os ânimos na agricultura. As máquinas que recentemente obstruíram o tráfego em rodovias federais pelo clamor dos produtores são as mesmas que teriam de ser usadas para produzir os milhões de toneladas de soja para tornar o biodiesel uma realidade. O descrédito em medidas governamentais é a maior ameaça à produção em larga escala.
Esse realismo objetivo não consegue derrubar as barreiras que têm justificado o projeto de apoio do governo ? a fundo quase perdido ? ao produtor artesanal. Salvo se ocorresse um preço de petróleo incapacitante, que compensasse o desvio da soja da exportação para a produção emergencial de combustível. Se, ao invés de recorrer à agricultura amadora, o projeto do biodiesel focalizasse as fontes profissionais do óleo, seguiria a trilha de sucesso do Proálcool. Até porque um programa dessa ordem é um desafio logístico e tecnológico de enormes proporções.
Hbio, uma novidade?
Ainda ao final da década de 1970, uma pequena refinaria de Manaus, hoje pertence à Petrobrás, fez uma experiência interessante. Adicionou certa quantidade de óleo de soja degomado à carga de uma refinaria convencional de petróleo. O resultado foi curioso, pois a mistura, embora longe do ideal, até funcionava bem em termos práticos. A experiência não foi adiante porque os catalisadores usados no processo de refino exigiam reposição caríssima. Há pouco a Petrobrás anunciou um projeto parecido com o de Manaus. Duas refinarias, a partir de 2007, estariam sendo preparadas para fazer essa destilação consorciada com hidrogenação e saturação de cargas de petróleo e óleo vegetal bruto, para obter o tal Hbio, no caso exclusivamente de soja. Se der certo, outras refinarias entram na história. A empresa informa ainda que o produto é "equivalente" e "complementar" ao biodiesel brasileiro.
Com base nas experiências passadas, talvez o Hbio chegue a ser factível, se houver estudos aprofundados sobre seus efeitos técnicos. Mas seria preciso aguardar para saber, de fato, quanto valeria posto no tanque do usuário e se afetaria a dirigibilidade dos veículos. Por enquanto, a novidade tem gosto de "dèjá vu". Seria ótimo que desse certo, porque aí aquele ?outro? biodiesel poderia ser remetido direto para o crematório.
Texto Original
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Cezar de Aguiar, físico, foi presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, por quatro mandatos não-consecutivos, e vice-presidente mundial da Fisita - Fédèration Internationale des Ingénieurs des Techniques de l´Automobile. É presidente da Tecknowledge International, transnacional especializada em tecnologia automotiva, ambiental e energética
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