Luiz Gylvan Meira Filho colaborou com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas durante 11 anos e foi vice-presidente do órgão, vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) De repente a humanidade abriu os olhos para o que já parecia evidente e vinha sendo anunciado há mais de uma década. Por causa do homem, o planeta está mudando. E, se não fizermos algo a partir de agora, a vida ficará inviável no futuro. Desde que o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), voltou a divulgar este ano que os gases estufa emitidos nos últimos dois séculos provocaram a mudança do clima na Terra, o tema virou ordem do dia. Apesar do alerta apocalíptico, ainda há espaço para otimismo.
Para o astrogeofísico Luiz Gilvan Meira Filho, 65, que colaborou com o IPCC durante 11 anos e foi vice-presidente do órgão, a mudança do clima acontece de forma gradual e o homem pode aproveitar os próximos anos para fazer algo para contornar a situação. Um dos mais conceituados cientistas do País, o pernambucano rejeita o tom de pânico propagado pela mídia. "O panorama é preocupante, mas muita gente passou a discutir o problema após o alerta. A sociedade vai superar o aquecimento global", diz o especialista, em entrevista por telefone.
De acordo com Meira Filho, no entanto, o custo da solução será alto. Dentro de três ou quatro décadas, os países terão que reduzir pela metade a produção de gases como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso, que se acumulam na atmosfera e favorecem o efeito estufa, impedindo a saída de calor para o espaço. Diminuir as emissões de carbono, avisa o cientista, é nossa única alternativa e o nosso maior desafio.
Meira Filho não se alinha à corrente dos apocalípticos, porém defende que a redução da produção de gases poluentes passa pela regulamentação por parte dos governos de metas a serem cumpridas pelas indústrias. "O mercado sozinho não vai resolver o problema", assegura o cientista. Mas ele também credita importância ao papel do cidadão comum. "A gente pensa que nossas ações não fazem diferença, mas o resultado multiplicado por milhões de outras pessoas que fazem o mesmo será decisivo para o planeta". O recado foi dado: está em jogo o futuro das próximas gerações.
O POVO - Os relatórios apresentados este ano pelo IPCC passaram a relacionar de forma mais contundente o aquecimento global à influência do homem. Por que antes não havia essa certeza?
Luiz Gylvan Meira Filho - O aquecimento global está sobreposto a uma variabilidade natural. Enquanto o aquecimento era relativamente pequeno comparado com a variabilidade natural, era difícil detectar a mudança de clima de forma inequívoca. Agora, com o aumento da temperatura média mundial, que já está em cerca de 0,7º C no último século, mesmo com a presença da variabilidade natural, dá para ver a diferença de forma muito clara. Além de os modelos matemáticos serem melhores, a principal razão é porque a temperatura média mudou mais exatamente no mesmo período em que o homem passou a jogar mais gases estufa na atmosfera.
OP - Qual é a porcentagem de certeza dos cientistas de que o clima no planeta está mudando por influência do homem?
Meira Filho - A incerteza é de apenas cerca de 5%. Praticamente não há mais duvida em relação a isso.
OP - Existe motivo para pânico?
Meira Filho - Acredito que não. Pânico é mais apropriado para casos de desastres mais iminentes, que irão ocorrer nas próximas horas. A mudança de clima ocorre de forma lenta e o homem pode aproveitar os próximos anos para fazer algo a respeito, sem pânico.
OP - É preciso diminuir a que nível as emissões de carbono?
Meira Filho - É necessário cortar pela metade as emissões globais de carbono. Sabemos que uns países produzem mais emissões que outros, mas o país de onde vem as emissões é completamente irrelevante. O mundo precisa cortar pela metade, em umas poucas décadas, no máximo 30, 40 anos, porque senão ficará praticamente impossível segurar o processo de aquecimento global depois. Isso implicará em uma menor produção de riquezas, mas é o preço a se pagar.
OP - O senhor acha que o mercado reduzirá as emissões de carbono se limites não forem estabelecidos pelos governos?
Meira Filho - Pela própria lógica do mercado, o que dá valor ao comércio de carbono, a venda da tonelada de carbono, é a regulamentação por parte dos governos, é a exigência dos governos de que se limite as emissões de gases estufa. É só no momento em que isso ocorre é que as empresas passam a se preocupar em diminuir as emissões de carbono, porque sabem que terão uma contrapartida financeira interessante. A regulamentação dos governos é absolutamente necessária. O mercado sozinho não vai resolver o problema.
OP - No início da década, os Estados Unidos não queriam admitir a responsabilidade humana no aquecimento global e, hoje, já existem governos como o da Grã-Bretanha cogitando diminuir as emissões de carbono em até 60% num futuro próximo. O que influenciou este avanço tão rápido?
Meira Filho - As evidências científicas, fundamentalmente. Embora já se soubesse do problema desde 1971, quando saiu o primeiro estudo a respeito, o que ocorria antes era que não se podia perceber a mudança de clima. Mas agora dá para ver de forma inequívoca. Os governos, uns antes dos outros, sem a menor dúvida, levarão essa discussão à diante, tomarão providências diante das evidências científicas. A Inglaterra tem exercido um papel muito importante de liderança mundial em reconhecer o que está nos relatórios, entendendo que é preciso cortar as emissões pela metade. Ela se propõe a cortar mais do que a metade, até para permitir acomodar o crescimento de alguns países que precisam fazer com que suas emissões aumentem.
OP - Estima-se que 75% das emissões de carbono no Brasil são fruto das queimadas na Amazônia. O senhor percebe alguma movimentação do governo brasileiro para combater isso?
Meira Filho - A solução real de médio prazo não é só combater o desmatamento em si, mas todo um processo de organização do uso do solo em todo o Brasil. É uma questão de planejamento. Não é uma tarefa fácil, pois na nossa república federativa há competências da União, dos governos estaduais, dos municípios. Se houver uma conscientização dos governos, esse processo será acelerado nos próximos anos.
OP - A criação de mais zonas que não pudessem ser exploradas ajudaria?
Meira Filho - O Brasil já tem cerca de 15% da área da Amazônia legal na forma de reservas, em que não se pode tocar, por uma razão ou outra. Pouco mais de 15% já foi desmatado, dos quais cerca de 30% foram abandonados e poderiam ser reflorestados. Quanto aos 60 e tantos por cento restantes, o que se tem que fazer é um zoneamento com adoção de políticas que induzam ao desenvolvimento social e econômico sustentável da região sem tanto desflorestamento. Isso não é fácil, dá trabalho, mas é perfeitamente possível.
OP - O Brasil sempre foi visto como um lugar imune a catástrofes ambientais como furacões, como vemos em outros países. Essa situação pode mudar com o aquecimento global?
Meira Filho - Não, nós nunca chegaremos ao ponto de termos furacões como no Oceano Atlântico, que afetam os Estados Unidos, ou tufões, como no Pacífico e no Índico. Mas teremos alguns fenômenos meteorológicos mais severos, como conseqüência da mudança do clima.
OP - Quais tipos de fenômenos?
Meira Filho - O exemplo daquele pequeno furacão que atingiu Santa Catarina, apelidado na época de Catarina, aparentemente já é um indício da modificação da freqüência e intensidade de fenômenos meteorológicos severos. É impossível dizer com certeza como será no futuro com a amostra de um caso somente, mas o tempo dirá se o Catarina confirmará uma efetiva influência da mudança do clima sobre este tipo de fenômeno.
OP - As secas que vêm ocorrendo na Amazônia desde 2005 também podem ter relação com o aquecimento global?
Meira Filho - Da mesma forma, é um problema estatístico, pois a amostra ainda é muito pequena. Com o correr do tempo, veremos. Um exemplo interessante foi o que aconteceu com os furacões no Golfo do México. O mundo inteiro passou a perguntar se o Katrina, responsável pela tragédia de Nova Orleans, já teve algo a ver com a mudança do clima. A resposta correta é "não sei", porque foi um único caso de graves proporções. Mas estudos estatísticos durante 30 anos mostraram claramente que a intensidade média dos furacões no Atlântico aumentou devido à mudança do clima.
OP - Por que a elevação do nível do mar em alguns milímetros por década, conseqüência do degelo que vem acontecendo com o aquecimento global, afeta tanto o desequilíbrio do planeta?
Meira Filho - Se você morar num delta muito baixo, como Bangladesh, um aumento do nível médio do mar em dez centímetros que seja já vai determinar o alagamento de uma extensão de vários quilômetros. Na Baixada Santista, o sistema de esgoto e galerias pluviais tem um declive muito pequeno. Então, um pequeno aumento do nível do mar vai exigir um trabalho de engenharia para mudar o sistema de esgoto. É claro que, se você morar perto do mar em uma região escarpada, já existirá uma diferença a seu favor.
OP - Alguns pesquisadores dizem que o relatório do IPCC foi até conservador diante do quadro que temos no planeta. O quê, por exemplo, foi deixado de fora por falta de dados conclusivos?
Meira Filho - Os relatórios do IPCC são revisões feitas por cientistas de artigos publicados em revistas científicas. É evidente que, numa ciência experimental, nem todos os artigos científicos publicados estão completamente de acordo entre si. Como o processo envolve muitos cientistas, não acho que o relatório é conservador, pois ele reflete um certo consenso entre os cientistas.
OP - O senhor se enquadra no grupo dos pesquisadores que tem uma visão apocalíptica ou otimista em relação ao aquecimento global?
Meira Filho - A visão apocalíptica é até interessante, mas acho que não se aplica. O ser humano tem o poder de arbítrio e não se conhece nenhuma espécie na natureza que tenha tendência de cometer suicídio coletivo. Tenho certeza de que, suficientemente bem informada sobre esse problema que é relativamente complexo, a humanidade saberá tomar medidas para que o aquecimento não ocorra de forma tão severa.
OP - Quais são as alternativas de utilização de energia limpa que contribuam para evitar o aquecimento global?
Meira Filho - No Brasil, o uso crescente dos chamados biocombustíveis é uma ótima alternativa. Temos o etanol, o biodiesel e o carbono vegetal renovado, vindo de árvores plantadas. No Ceará, em particular, o potencial de energia eólica é grande, por causa dos ventos alísios. Varia muito de um país para outro, de um lugar para outro. Não há uma solução mágica única, mas o Governo precisa ficar atento pois o uso dessas alternativas será necessário em breve.
OP - O potencial de energias renováveis no Brasil é bem aproveitado?
Meira Filho - O Ceará, por exemplo, foi pioneiro em utilização de energia eólica no Brasil. Não é o lugar ideal para o trabalho com cana de açúcar, mas para biodiesel sim. Só precisa se adaptar às peculiaridades e condições do clima e do solo de cada região. O Ceará pode ter um importante papel na consolidação dos biocombustíveis. À medida que houver uma regulamentação no País, o esforço das empresas em investir em produção e utilização de energias renováveis terá que ser premiado pela sociedade como um todo, por meio de incentivos econômicos.
OP - Dentre as possibilidades de outros tipos de energia que podem ser usadas pelo homem, o senhor é a favor do uso de energia nuclear?
Meira Filho - A utilização de energia nuclear será necessária ao mundo. É uma questão de se encarar friamente três questões associadas à energia nuclear que precisam ser abordadas: o que se fazer com os resíduos radioativos; a segurança dos reatores, para se evitar acidentes; e a proliferação do uso indevido da substância radioativa para se fazer coisas que a sociedade condena. Há um programa internacional envolvendo reatores de 4ª geração que busca desenvolvimento de reatores que resolvam de maneira melhor essa necessidade de energia. O Brasil, inclusive, faz parte desse programa. Eu sou a favor da decisão de dar continuidade à usina de Angra III. Mas a questão de custos é problema que o governo tem que analisar.
OP - O que o cidadão comum pode fazer em casa para contribuir para a diminuição das emissões de carbono?
Meira Filho - Usar mais transporte coletivo e prestar mais atenção ao consumo de energia são dois pontos básicos. O cidadão comum que tem interesse em deixar o que a gente chama de legado ambiental para as próximas gerações tem um poder enorme. A gente pensa que nossas ações não fazem diferença, mas o resultado multiplicado por milhões de outras pessoas que fazem o mesmo será decisivo para o planeta. Por isso, é muito importante informar e conscientizar a população em fazer pelo menos o mínimo para colaborar com o meio ambiente.
OP - Dá para ter esperanças no futuro?
Meira Filho - Sem a menor dúvida. O panorama é preocupante, mas nota-se que muita gente passou a discutir o problema após o alerta do IPCC. A sociedade pode estar mal informada, até porque o problema é complexo, mas acredito que, com as informações divulgadas pela imprensa, ela passará a ter mais cuidados com o que pode fazer em casa e passará a cobrar dos governos que se regulamente limites nas emissões de carbono para contornar a mudança do clima.
PERFIL
Doutor em astrogeofísica pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, o pernambucano Luiz Gylvan Meira Filho, 65, nascido em Olinda, graduou-se em engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Colaborou com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU) durante 11 anos, chegando a co-presidente do Grupo de Trabalho Científico e vice-presidente do órgão. Foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde se aposentou como pesquisador titular, tendo atuado em vários cargos de chefia e direção. Também foi presidente da Agência Espacial Brasileira, entre 1994 e 2001, tendo em seguida assumido o cargo de secretário de Políticas e Programas de Ciência e Tecnologia do Ministério de Ciência e Tecnologia. Atualmente, é pesquisador visitante da área de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
DICIONÁRIO
Gases estufa - São responsáveis pelo fenômeno do efeito estufa, o aquecimento da Terra devido à absorção, reflexão e reemissão de radiação infra-vermelha pelas suas moléculas contidas na atmosfera. São eles: dióxido de carbono (CO2), óxido nitroso (N2O), metano (CH4), hidrofluorcarboneto (HFC), perfluorcarboneto (PFC) e hexofluor sufuroso (SF6).
Comércio de carbono - Negociações que passaram a valer com o Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 2005 e estabeleceu que países desenvolvidos reduzam em 5,2% as emissões de gases do efeito estufa até 2012. Empresas com uso de energias renováveis em países subdesenvolvidos ganham créditos de carbono, que podem ser revendidos aos países ricos.
Katrina - Um dos furacões mais destrutivos registrados até hoje nos Estados Unidos, atingiu a região litorânea do sul do país, especialmente em torno de Nova Orleans, no dia 29 de agosto de 2005. Causou cerca de mil mortes e prejuízos de cerca de US$ 2 bilhões.
Catarina - Primeiro furacão registrado no Atlântico Sul, atingiu o sul de Santa Catarina e o nordeste do Rio Grande do Sul nos dias 27 e 28 de março de 2004, causando destruição em várias cidades.
Biocombustíveis - São fontes de energias renováveis, derivados de produtos agrícolas como cana-de-açúcar, plantas oleaginosas, biomassa florestal e matéria orgânica. Como exemplos, temos o biodiesel, etanol, metanol, metano e carvão vegetal.
Ventos alísios - São ventos que ocorrem durante todo o ano nas regiões tropicais, resultado da ascensão de massas de ar que convergem de zonas de alta pressão, nos trópicos, para zonas de baixa pressão, no Equador, formando um ciclo.
Reatores de 4ª geração - Modelo avançado de reator para geração de energia elétrica, aproveitará rejeitos produzidos por reatores convencionais, fechando o ciclo do combustível nuclear. Fruto de consórcio internacional, deverá estar disponível em 2030.
Angra III - Usina nuclear em construção na cidade de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, está com obras paralisadas desde 1986. A estimativa do Governo é de que sejam necessários R$ 7 bilhões para finalizá-la.
Fonte:
segunda-feira, 11 de junho de 2007
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